Estevan de Negreiros Ketzer  |  Psicólogo Clínico CRP 07/19032

O papel da imaginação na Escrita Criativa

3 princípios da Escrita Criativa para o seu texto

Nosso objetivo apresentar três princípios fundamentais para o texto receber uma dose de criatividade salutar. A ideia é dar a cada texto uma flexibilidade na escrita capaz de ajudar os mais diferentes alunos a exporem ideias com criatividade. Os elementos chamados “literários” ou mesmo “artísticos” podem ser utilizados para o texto adquirir um grande desenvolvimento e atrair mais leitores e, sem dúvida, dar ao texto uma nota mais alta em exames de qualificação.

A Escrita Criativa amplia o ato comunicacional a partir da proposta de tirar o signo linguístico de uma ostensiva e amena forma de registro cognitivo, para transpô-lo a outros campos semânticos que surgem pelo desenvolvimento da escrita. Sua prática objetiva um efeito estético, sensibilizando a partir da inspiração do escritor para o leitor.

Os princípios da 1) liberdade, 2) objetividade e 3) funcionalidade possibilitam a produção de um texto articulado com a sociedade, trazendo autonomia ao aluno. Esses elementos fomentam assim a criatividade pela formação de um pensamento crítico advindo da escrita, unido à liberdade da composição. A Escrita Criativa, desta forma, diferencia-se da escrita jornalística, científica e técnica, ao fomentar a criatividade, aprimorando o texto.

As ideias da Escrita Criativa exploram suas capacidades e interesses diversos, propõem uma nova percepção de leitura. Não há texto “certo” ou “errado” enquanto composição, uma vez que a prática da escrita é um exercício para atingir um determinado fim. A função exercida por um texto, pelo uso de uma linguagem estética, pretende passar uma mensagem utilizando-se de figuras de linguagem, símbolos, afetos, alusões, poeticidade, ritmo e outras formas.

A Escrita Criativa não se restringe a um conjunto de técnicas de produção textual, mas é a descoberta da capacidade expressiva individual do aluno, atrelado a sua experiência de vida. Memória e imaginação despertam um ser humano melhor e mais integrado com sua consciência e desenvolve um sujeito mais flexível em suas relações com a sociedade.

Escrita Criativa como formas diferentes de expressar pensamentos

Introdução

A Escrita Criativa poderia ser comparada a um experimento científico em sua fase de testes. O texto é tal como um tecido, a unir diferentes relações despertadas pela sensibilidade e ao conhecimento da escrita. O aspecto literário de um texto lida com algum tipo de realidade que não é simplesmente dado na palavra. Há três etapas da criação: leitura, escrita e criatividade. Vejamos o exemplo abaixo:

                          Dia de sol

                          Sorriso de samba

Por leitura, precisamos destacar as palavras e sua lenta e gradual união semântica. O que essas palavras querem dizer? Aonde a ideia delas pretende chegar? O que elas não dizem, mas acabam levando-nos a pensar? Ler já é um ato muito importante para a Escrita Criativa. A criatividade emana de uma organização inicial a partir das regras básicas da junção de palavras com a finalidade de um significado básico.

Em relação à escrita, demonstramos uma relação física. Portanto, é um gesto mecânico entre a mão e o cérebro. A Escrita Criativa busca uma organização das regras gramaticais unidas à ideia interior do escritor. Como escrever de forma a passar uma ideia clara e ao mesmo tempo sensível de um fato? Esse elemento é essencial para a Escrita Criativa.

Enfim, a criatividade enquanto a expressão sensível de uma pequena parcela de interesse de quem se dispõe a pensar e transmitir uma ideia para quem vai ler o texto. A concatenação da Escrita Criativa ao unir palavras e ideias exige uma disponibilidade para dar demonstrar as ideias e não apenas descrevê-las (frase advinda do inglês show me, don´t tell me).

A criatividade trará diferentes formas de conectar níveis de realidade. Na questão do “sorriso de samba”, aplicado ao nosso exemplo, foi criada intencionalmente uma metáfora na relação gramatical entre elas. Nós observamos tanto a incoerência quanto a falta de sentido, porém, pela relação estabelecida, podemos atribuir a elas qualidades afetivas, nas quais a imaginação faz parte e é plenamente importante. Eis a relação primordial da Escrita Criativa para a realização de textos.

Veremos os pormenores dos três princípios norteadores da Escrita Criativa:

1) Liberdade: a liberdade é a busca do que é autêntico da pessoa de acordo com a forma escolhida. Está em jogo a sensação do que deve ser transmitido e o porquê da transmissão;

2) objetividade: o texto objetiva algo, tem uma voz própria que pode ou não atingir o efeito criado pela mente do escritor, o escritor não escreve para si, escreve para o outro (relação com a alteridade);

3) Funcionalidade: qual é a função desempenhada pelo texto, se ele “funciona”, em termos práticos, com sua linguagem (ritmo, figuras de linguagem, sonoridade, afetos) e adequação ao enredo desenvolvido.

1 – A Liberdade na Escrita Criativa

“Quando acordou o dinossauro ainda estava lá.”

Augusto Monterroso

Para o desenvolvimento da Escrita Criativa em sua plenitude precisamos de um exercício de liberdade criativa em que o foco seja escrever algo que chame a atenção. Se dermos cinco minutos para uma produção escrita estamos limitando o tempo, mas nesse tempo a liberdade exaltar-se-á. Há uma forma de mostrar esse curioso jogo da Escrita Criativa, não para ver quem escreve primeiro simplesmente, mas para ver como sintetizamos a escrita de maneira a deixar o fluxo de ideias livre.

O jogo é mais do que a imposição de uma regra, é antes lidar com a regra de maneira a favorecer que o interlocutor (neste caso o leitor) também jogue conosco. Ao favorecer a entrada do leitor de acordo com nossa ideia é parte do sistema da Escrita Criativa.

Se a liberdade é um certo limite de ação em que não posso simplesmente fazer o que eu quero, como posso chegar a ela e ainda transmitir a ideia que quero? Vamos partir das nossas contribuições de hoje para pensar como podemos escrever de uma forma que seja ao mesmo tempo implicada com o leitor e atrelada às ideias dos escritores. Há aqui uma negociação desse jogo na Escrita Criativa.

Quando falamos de escrita falamos sobre como fazer um negócio. É justamente a “negação do ócio” que está na formação desta palavra, mas mais do que isso, é também saber a entrar em contato com os diferentes desejos implicados na realização de uma tarefa. Eis a tarefa da Escrita Criativa. Exemplo:

“O ginasta olímpico em busca da medalha de ouro”.

 Uma tarefa mais difícil do que costumamos imaginamos no cotidiano de quem não é ginasta olímpico. Para o ginasta é algo muito além do mero desejo de tirar ouro, mas aprender que se esse desejo é real ele precisará passar por muitos desafios até lá.

Vamos pensar na frase acima de maneira a como propor com síntese e intensidade uma frase com elementos da Escrita Criativa. Se eu escrever:

1 – “hoje saí para comprar pão” gostaríamos que nós pensássemos em como delimitar criatividade contida nela. Agora se eu escrever:

2 – “Hoje saí para comprar pão conforme me disseram.” Aumentei uma indagação. Meu cérebro vai querer saber “quem” disse a essa pessoa para comprar. E mais ulteriormente posso perguntar o porquê de alguém parecer tão passivo a uma ordem.

3 – “Hoje saí para comprar pão conforme me disseram, para me perder entre as estrelas da noite sem fim.” Houve uma mudança súbita. Podemos pensar sobre a nossa hipótese inicial de uma passividade, mas um certo movimento de sair da realidade inicialmente estabelecida como fato. Os motivos para essa saída da realidade podem ser vários.

Esses três exemplos, conectados, envolvem não só possibilidades de Escrita Criativa, como também um sutil e ostensivo movimento de nosso cérebro em direção ao entendimento do que está acontecendo. Geralmente nosso cérebro gosta de entender o que acontece, mas é comum também gostarmos de uma coisa que não conseguimos entender, pois ficamos curiosos acerca de seu processo. Esse é justamente o efeito estético da escrita. É sobre ele que a Escrita Criativa deve lidar.

Por isso, escrever também exige de nós leitura, para encontrar formas de trazer esse efeito estético para mais perto de nós e, consequentemente, do texto. A leitura é uma atividade na qual começamos a despertar pensamentos e sentimentos. Portanto, a Escrita Criativa deve transmitir pensamentos e sentimentos com excelência. 

Definições preliminares de um bom texto.

2 – Objetividade na Escrita Criativa

Querido, o que você prefere? Uma mulher bonita ou uma mulher inteligente?

Nem uma, nem outra. Você sabe que eu só gosto de você.

            A Escrita Criativa deve ser objetiva. O que é escrever com objetividade? Esse princípio nos coloca um desafio que se dá justamente quando pensamos uma coisa e não sabemos como transpô-la para o papel, isto é, materializá-la. Como se faz isso? Vimos que para escrever precisamos de liberdade e que esta liberdade está sempre atrelada a uma noção de responsabilidade.

Devo sou livre por ser responsável sobre as minhas escolhas. Isso significa que partilho com o outro a minha maneira única de ser quem eu sou. Algo sobre mim eu já conheço, mesmo que não tenha consciência de tudo o que me cerca. Isso aumenta a possibilidade de escolher esse lugar em detrimento de outro para eu estar. Essa também é a base para o conhecimento.

Um professor só pode falar de alguma coisa que ele sabe. Se ele fala de algo que não sabe fica evidente para todos a perda na confiança, por melhor que o professor tente disfarçar esse embaraço. Essa é a tarefa de quem educa: estar sempre se colocando com humildade para aprender. Ou pelo menos deveria ser assim.

A atividade educacional passa a ser geral com o passar do tempo: todos aprendem a ler e a escrever. As pessoas passam a identificar códigos com o objetivo de acumular conhecimentos que serão ferramentas para o trabalho.

            Vamos voltar agora para o uso da liberdade na Escrita Criativa e sua consequência para as relações humanas em geral. Aquele que sabe contar uma piada pode, por exemplo, fazer com eu pareça inteligente, porém, pode ser uma boa forma de disfarçar um problema ou mostrá-lo para todos nós de um jeito menos dolorido.

Uma piada envolve um problema que pode entrar em contradição consigo mesmo em algo geralmente comum e sem solução. Com a Escrita Criativa nós brincamos facilmente com as normas sociais, com as regras, com o que era para ser certo, mas com a piada enxergamos uma faceta meio encabulada ou mesmo tímida de uma situação.

Esse fato mostra o quanto essa situação não é tão simples ou ao menos ela não deve ser tão exaltada assim. A piada mostra, com o riso, um outro objetivo, geralmente muito mais real, por trás das aparências. Não precisamos dizer que a piada transtorna situações públicas, tenciona governos de diferentes culturas e por vezes mostra uma deselegância entre pessoas.

            Se nos dirigirmos para além dessas questões da piada vemos que ela possui um objetivo primário (fazer rir) e um secundário (tratar um assunto), mas se vale disso de um efeito na percepção da linguagem (estranhamento). Atingir um objetivo é entrar em uma situação de adequação ao que se pretende dizer e, portanto, em direção a algo mais concreto do que o nosso princípio da liberdade, pois ela se vale da parte escrita que podemos identificar como aquilo o que foi contado, o conteúdo, uma ideia, um sentimento. Esse é um elemento básico para a consolidação da Escrita Criativa.

Quando pensamos em objetividade precisamos levar em consideração o como foi contado, partindo da ligação entre uma linguagem que penso e a linguagem adequada para sua transmissão.  

            Um outro exemplo acerca da objetividade perpassa a produção do conhecimento científico. Precisamos ter a clareza e a crítica de muitos cientistas para poder escrever de modo adequar uma coisa e a outra.

Um experimento científico simples possui alguns elementos indispensáveis para a Escrita Criativa:

  1.  Um problema: como diminuir o sofrimento causado pela partida de alguém que amamos?
  2.  Dirigindo-se para uma hipótese para sua solução: para olhar essa situação com clareza, preciso reconhecer que sou eu que causo sofrimento em mim e não a partida dela em si.
  3.  Uma análise da situação: quando sofro meus amigos me dizem que não gosto de conversar sobre esse assunto.
  4.  E uma inferência: se diminuir meu nível de sofrimento e encarar que a vida continua posso sair com outras pessoas e tentar ser feliz novamente.

Podemos imaginar o quanto esse processo precisa firmar seus objetivos no decorrer de uma narrativa. Vamos trazer essas ideias no formato de um texto, tal como vemos abaixo:

A partida dela mudou minha vida. Falas emudecem, pois tudo deixa de ser. E todo o resto é a clausura de uma lua nova. Sair da garagem após estacionar o carro é sentir na garganta este amargor dos dias. Envenenei o que podia durante o café. Um deles abriu a janela da sala, talvez para me ajudar. O ruído baixo, quase uma quebra da mesmice mesma, trazido como convite pela faixa ensolarada: a vida continua.

            Neste breve conto, há quatro modos de identificar objetivamente a Escrita Criativa. Poderiam ser outros. Houve uma escolha o tempo todo, inclusive para demonstrar as palavras que foram colocadas. Para dar conta da “falta dela”, utilizei a frase “falas emudecem, pois tudo deixa de ser”. Essa foi uma operação metafórica que teve um efeito alusivo.

Isso significa que foram unidas palavras, cujo o mote da expressão a da sensação de que algumas coisas deixaram de ser (como nada deixa de ser a sensação é de que algo muito forte se perdeu). Por esta razão, o sentimento de “dor de amor” é tão utilizado na Escrita Criativa, uma vez que além de ser um sentimento universal há muitos recursos para podermos escrevê-lo.

            Em nosso caso particular envolvendo a escrita, é necessário ver com atenção o que pode estar sendo obstáculo para a objetivarmos a linguagem, de modo a transmitir uma ideia com clareza. Trouxe hoje alguns exemplos de ambiguidades que podem ocorrer quando escrevemos um texto:

1 – Crianças que recebem leite materno frequentemente são mais sadias.

            São sadias as crianças que recebem leite frequentemente ou são frequentemente mais sadias porque recebem leite? Relação entre causa e consequência.

2 – Este chefe dirigiu bem sua nação. 

            A nação do chefe ou a nação de outro?

3 – O diretor pegou o aluno correndo no pátio da escola.

            O aluno corria no pátio ou o direto estava no pátio?

4 – O aluno disse ao professor que era carioca.

            O aluno era carioca ou o professor era carioca?

5 – Sentado na varanda, o menino avistou um mendigo.

            O menino estava na varanda ou o mendigo?

6 – Onde está a cachorra da sua mãe? 

            Se refere a mãe ou ao animal?

7 – Ele morreu de rir.

            Morreu mesmo ou estava rindo muito?

8 – Você tem pastel de um real?

            O pastel que custa um real ou um pastel que o recheio é um real?

9 – Queria doce, levou bala!

            O doce é de açúcar ou é uma droga? A bala é de açúcar ou de chumbo?

10 – Encostou no membro dele.

            Qual será o membro dele? 

            Abaixo, há dois exemplos consagrados na literatura:

“Viver de graça é mais barato” – João Guimarães Rosa

“Navegar é preciso, viver não é preciso” – Fernando Pessoa

            A objetividade é extremamente importante para a Escrita Criativa e pode ser desenvolvida com a instrução correta.

A prática da Escrita Criativa começa com a busca de ideias.

3 – A funcionalidade na Escrita Criativa

O efeito estético é parte essencial da Escrita Criativa. Sem ele não há propriamente o “criativo”, não há o jogo de esconde-esconde que anteriormente manifestamos como parte integrante da disciplina. Ele depende de um certo lugar em que o escrito vai nos colocar, enquanto leitores e produtores de textos, um lugar que vamos ser arremessados e de lá olharemos o que está de fato em jogo, qual é o envolvimento com a linguagem.

A Escrita Criativa mostra de certa forma esse envolvimento com a linguagem, não somente do ponto de vista lexical ou gramatical, mas de uma sensação de sermos arrebatados, seja pelo pensamento que ela nos conduz ou pelo afeto que ela desperta.

Por funcionalidade temos um termo A que assume função de B, logo ele substitui o outro. Ao invés de dizer simplesmente que o “o dia é belo”, dizemos:

“o sol da manhã

renasce em mim

ondas

de lugar

sem nós”.

Notamos aqui um uso diferente da linguagem. Essa maneira de utilizarmos a linguagem se permite um uso muito diferenciado do costumeiro em textos. Em grande parte, porque a linguagem mesmo é um tipo de lance de dados (coup de dés, como nos lembra o poeta francês Stéphane Mallarmé), quando podemos mostrar que é no seu cerne um movimento autêntico. É o momento em que já manejamos certas regras de composição.

Na música esse movimento é muito particular, por exemplo, para um músico aprender a notação musical, aprende escalas, ritmos, alturas e timbres diferentes. Possibilidades que precisam ser tanto estudadas como praticadas para se poder chegar a alguma composição própria. Então não há outro meio que não seja mostrar realmente que a composição passa a ser estética quando essas regras fazem parte da pessoa.

É por esta razão que precisamos começar a pensar a Escrita Criativa como um exercício pessoal e, portanto, pedagógico com relação aos nossos afetos que nos caracterizam como nós mesmos.

Gostaria de trabalhar com a hipótese de que este efeito estético gerado pelo exercício traga par nós algo mais profundo. Nós que escrevemos levamos muito em consideração o fato de que haja no efeito estético o segredo de sua regra de composição. Estética vem do grego Aisqhtikh (sensação ou sensibilidade). Esta qualidade nos chama para algo que foge da compreensão pura do 1+1= 2, pois as regras estéticas não são simples convenções lógicas.

Essa apreensão do problema estético vai aparecer em toda a história do pensamento ocidental e, como já dissemos em aula, esse problema é percebido como secundário para muitos. Há também a ideia de que um problema estético é superficial diante de um dilema ético ou mesmo de um problema epistemológico.

O fato é que o estético possui uma qualidade ainda a ser trabalhada por nós. Há uma qualidade estética na Escrita Criativa que nos coloca sempre em xeque, uma vez que exige nossa opinião sobre como colocar uma questão quando as faculdades mentais racionais não conseguem perceber ou distinguir.

O problema estético se aproxima muitas vezes do ético, pois apresenta valores e a posição de quem valoriza. Como valorizar as coisas? Como levá-las em conta em nossa vida, mesmo quando elas parecem simplesmente difíceis de serem respondidas com o 1+1=2. Estamos de certa forma fugindo desesperadamente desta fórmula matemática que parece explicar tudo.

O nível estético da criação literária exige de cada um o horizonte do planejamento estética com uma determinada chegada. É muito comum escritores escreverem pelo fim e de lá desabrocharem a narrativa inteira. Por exemplo com a sentença: “e se…” “E se o mundo fosse diferente, como as coisas seriam?”, “E se minha mãe que eu amo tanto morresse?”, “E se eu ganhasse na loteria?” Essas frases, acontecimentos muito significativos, podem ser pensados para atingirmos nossos efeitos estéticos in media res, isto é, do meio para o início ou do fim para o início.

A literatura é o resultado de um gesto criador. Enquanto gesto criador estamos sempre diante de uma tomada de decisão acerca do que vemos e da quantidade de riqueza que podemos extrair do que vivemos para que haja um certo tipo de deslocamento. Isso coloca o efeito estético muito próximo das relações éticas, uma vez que as relações humanas estão sempre sendo questionadas, de pontos diferentes e sobre questões que nós mesmos não somos capazes de responder tão prontamente. A arte, via de regra, propõe questões, não responde como na filosofia ou na ciência, mas nos apresenta um material a ser elaborado.

Gostaria de apresentar-lhes o último parágrafo do famoso conto do escritor estadunidense Edgar Allan Poe, intitulado A queda da casa de Usher, de 1939:

Enquanto eu olhava, a fenda rapidamente se alargou – houve uma rajada mais impetuosa da ventania – o globo inteiro do satélite invadiu de repente meu campo de visão – grossas paredes ruíam, despedaçando-se – houve um longo e tumultuoso estrondo, com mil vozes de água – e a profunda e sombria lagoa a meus pés fechou-se sombriamente sobre os destroços da Casa de Usher.

Imaginem que esta é a imagem final de uma história de vocês. Como seria o desenlace dela? Como seria seu começo, o que poderia ter acontecido para chegarmos a este final aterrador?  A Escrita Criativa precisa dessa sensação de que irá se manter em nós, alguma moral da história ou alguma ideia muito interessante que queremos utilizar em algum meio.

Considerações Finais:

A Escrita Criativa propõe um tempo de amadurecimento decorrente da aprendizagem de novas técnicas de escrita. Significa dar mais tempo para receber dele também o que não sabemos. A Escrita Criativa se vale menos dos saberes para nos propor sabores advindos da sensibilidade. Ela nos conduz a uma atividade que reúne elementos heterogêneos em busca de um mesmo fio condutor: a narrativa. Narrar implica os elementos narrados com a dúvida que tanto nós quanto o leitor possuem sobre suas origens.

Um simples ato de contato da caneta com a folha é capaz de dar vida a novos seres muito velhos: máquina do tempo na qual estamos todos enredados, como num imenso jogo do qual a resposta não pode vir ao acaso, mas certamente mobiliza o acaso para dar luz a uma nova regra, a regra escondida, a regra das regras, no circuito interno que conduz a mente humana para seu centro. Assim, uma ideia muito distante e quase impossível num primeiro encontro, precisa de uma rede que a apanhe.

A ideia na Escrita Criativa estranhamente nos envolve, passamos a ver ela nas paredes do quarto, no trabalho, na caneca de café, na lágrima que despencam diante em um dia ruim. A ideia está ali sem pedir licença.

Essa certa verticalidade entre ideia e recipiente para contê-la parte dos dois polos. Só uma ideia sozinha não é suficiente para gerar tanto ou será que nós precisamos desenvolver estratégias para nos aproximarmos dela. Parece que esses dois elementos precisam se encontrar, ainda que muitos ruídos partilhem um desencontro desejante de proximidade. 

“Toca a luz um sorriso de manhã.

É de lá que vem a esperança,

Em tempos entorpecidos.”

Cada frase acima se conecta com a outra, tentando trazer além da conversa um outro gesto, algo a mais sobre a comunicação humana, uma nova faceta das coisas. As palavras se inventam impossíveis, como em um “sorriso de manhã”. Como poderia sorrir a manhã? Ela não sorri evidentemente, mas o que nos aproxima de um sorriso, isso é o valor atribuído. É isso que expressa muito mais do que indica, liberando as tensões em busca de um novo movimento organizado.

Alguns aspectos sobre a Escrita Criativa e sua prática. Lançar alguns questionamentos sobre a relação da Escrita Criativa com as diversas formas de escrita. Qual é a diferença principal entre uma escrita comunicacional e uma escrita estética? A sensibilidade aqui passa a ser domínio particular e salutar quando é rememorado como importante para a vida.

Referências:

ARISTÓTELES. Arte Poética. São Paulo: Editora Abril, 1999.

BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 2003.

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

JAMES, Henry. A arte da ficção. Osasco: Novo Século, 2011.

KIEFER, Charles. Para ser escritor. São Paulo: Leya, 2010.

LODGE, David. The art of fiction. London: Viking, 1992.

QUENEAU, Raymond. Exercícios de estilo. Rio de Janeiro: Imago, 1995.

SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Intermeios, 2013.

SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2005.

VALÉRY, Paul. Introdução ao método de Leonardo Da Vinci. São Paulo: editora 34, 1998.

Web Sites:

OULIPO.

Acesso em: http://oulipo.net/.

SUBVERSA: literatura luso-brasileira.

Acesso em: http://www.canalsubversa.com/

Filmes:

BLOW UP – DEPOIS DAQUELE BEIJO. Direção:Michelangelo Antonioni. Roteiro: Edward Bond, Michelangelo Antonioni, Tonino Guerra. Elenco: Ann Norman, David Hemmings, Gillian Hills, Harry Hutchinson, Peter Bowles, Ronan O’Casey, Sarah Miles, Susan Broderick, Tsai Chin, Vanessa Redgrave. Produção: Carlo Ponti. Fotografia: Carlo Di Palma. Trilha Sonora: Herbie Hancock, The Yardbirds. Inglaterra: Metrocolor, Bridge Films, 1967 (111 min.). Son. Color.

MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO.  Direção: Marc Forster. Elenco: Will Ferrell, Denise Hughes , Tony Hale , Maggie Gyllenhaal, Emma Thompson. Roteiro: Zach Helm. Produção: Lindsay Doran. EUA: Mandate Pictures / Three Strange Angels / Crick Pictures LLC, 2006. (113 min.). Son. Color.

QUERO SER JOHN MALKOVICH. Direção: Spike Jonze. Produção: Michael Stipe, Sandy Stern, Steve Golin. Elenco: Brad PittCameron Diaz, Catherine Keener, Charlie Sheen, John CusackJohn Malkovich, Mary Kay Place, Orson Bean, Sean PennWinona Ryder. Roteiro: Charlie Kaufman. Fotografia: Lance Acord. Trilha Sonora: Carter Burwell. EUA: Propaganda Films, Gramercy Pictures, 1999. (112 min.) Son. Color.

ROSA PÚRPURA DO CAIRO. Direção: Woody Allen. Elenco: Mia Farrow, Jeff Daniels, Danny Aiello, Edward Herrmann, Van Johnson. Fotografia: Gordon Willis. EUA: Orion Pictures, 19 April 1985. (85min.) Son. Color.

Autor: Estevan Ketzer

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